domingo, 12 de agosto de 2018

Entre átomos e pixels

"Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me contou que somos feitos de histórias" - Eduardo Galeano



Junto à máquina, mexo meus botões. Primeiro, examino-a com aguçadas lentes multifocais. Cumprimento, só com um leve mexer do pescoço, todo o seu tênue comprimento. Sentada sobre a poltrona, corpo debruçado sobre o colo, ela também me vê. Eu lhe sorrio. Com passos apressados, dou zoom com minhas pernas. Chego perto. Solto um ” Tudo bem? Tudo bem e você? Tudo bem”. Que bom - o fotógrafo atingirá a perfeição da imagem no dia em que as máquinas fotografarem sozinhas  e o homem não agir mais como uma máquina. Tem vezes que eu mesmo pergunto, eu mesmo respondo. Ela põe o figurino. Eu examino. Seu cabelo liso fica bem com o vestido de linho bordado. Prepare-se! Ela se apruma. Arruma o cabelo, as mãos, os pés, os seios. Cruza os braços, as pernas, olha as unhas pintadas de vermelho. Vira de lado, vira de jeito. Joga o cabelo, eu lhe demoro o olhar. Ela se retrai, fiquei sem jeito. Respira. Relaxa. Agora está bem. Vamos lá, vamos lá! A lente da máquina é como o olho do homem. Atente-se. Não estou aqui, quem te observa é a máquina. Grandes, pequenos e silenciosos botões. Sorria! Lindo, lindo não mexa! Isso, assim, deixa. Assim. Um clic. Dois clics. Três clics. Cruza as pernas para o outro lado. Passa as mãos sobre o cabelo, vira o queixo pro espelho, faz bico com os lábio. Arruma o batom. Uma pausa. Um suspiro. Pela tela eu amplio. Pode ficar melhor - a beleza é sempre inalcançável sem o photoshop. Abro a janela pra correr o ar e lhe bagunçar o cabelo. O vento que sopra, assobia, arrepia. Em sua pele porosa, pequenos buracos. Os pelos eriçam, no buço, suplicam “me corte, me corte”. Os poros confirmam. O corpo, sinua. A matéria, dilata entre a sua timidez e a ousadia. Os defeitos, todos, visíveis a olho nu: O pescoço, grande demais. As mãos, compridas demais. Os peitos, pequenos demais. O ego, demasiadamente grande. Fico a tarde inteira para fotografá-la. Ela levanta, finge um desfile. E seu perfume fica pelo ar. Mudo o foco da câmera e as duas já estão íntimas. Troca olhares com a máquina como se eu nem mesmo estivesse ali. Uma tarde inteira para muitas fotos. Alguns minutos para que eu faça uma seleção. Esta não, esta não, está sim. Esta sim, esta sim, esta talvez. Talvez com uma mexida aqui, outra mexida ali. Na outra tela eu amplio e foco nos defeitos. Pixels. Pela tela, somos feitos também de pontos. Pequenos, pequeninos, invisíveis a olho nu, visíveis pelas máquinas.  Deveríamos ser feitos em formas. Coloca os ovos, a farinha, um pouco de água e fermento. Estatura baixa, média ou alta? Cabelos loiros, castanhos claros, escuros ou grisalhos? Nariz tucano, batata ou arrebitado? Escolha a forma, opte por um pouco mais de farinha para uma pança maior, um pouco mais de água, para ser tanto mais magrelo. Inventariam menos aplicativos de beleza. O homem seria, ao todo, sua própria natureza. Dou zoom na tela e reparo na barra do vestido dela. Ponto cruz. Uma linha por baixo, outra linha por cima. Um X ao lado de outro X. Pixel ao lado de outro pixel. Átomos ao lado de átomos. Somos pequenas partículas - é como dizem os cientistas por aí. Íntimos ao lado de íntimos - como dizem os românticos por aí. (Antas ao lado de antas, como dizem os revoltados por aí). Pessoas  que se cruzam em ponto cruz com outras pessoas, que vagam por aí. Somos histórias e histórias - como diriam os passarinhos por aí. E vão-se os corpos, restam as imagens. Vão-se os átomos, eu vivo de pixels.


                                                      (texto escrito por Laura Barbeiro)

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