sexta-feira, 17 de maio de 2013

À galope e adiante - Geraldo


À  galope e adiante - Geraldo

Camisa xadrez e uma calça muito apertada. Ele espiava atento o movimento da rodoviária. Onde estamos? Será que vai demorar muito pra chegar? Ô lugarzinho escondido, cacilda! Uma égua melindrosa me espera. “Quero ir e voltar hoje mesmo. O patrão me chamou pra amansar a bichinha. Não gosto de viajar, não. Gosto de ficar no mato, gosto de andar a cavalo. Queria ir e voltar hoje mesmo.”
Era um cara assim, eu diria: “Uai, sô, eu sô assim”. Era um cara atípico pros dias urbanos de hoje. Ele usava um chapéu de palha, botinas de camurça. Ele usava um cinto desgastado, com um G na fivela em maiúsculo, parecia bem surrado pelos anos de uso. Ele demonstrava uma expressão no rosto de quem não queria estar ali, de quem não queria ter saído de sua cidadezinha, do seu meio do mato. A pele meio morena de sol, de gente que anda muito, gente que acorda cedo porque simplesmente gosta de andar por aí, procurando o que fazer.
                “Óia, vê. Com a chuva caindo aí, se chover assim a viagem inteira eu não vou sair do ônibus”. Sentava com a poltrona reta, não sabia que ela deitava e que poderia dormir a viagem inteira se inclinasse só um pouquinho. A hora em que o ônibus parou ele desceu. E voltou comendo uma paçoca. Gravei aquilo. Era uma coisa que combinava com ele,  aquele doce de amendoim! Só achei que fosse ter  mais graça se ele voltasse comendo um pé de moleque. Como quem não quisesse mais papo, ele cruzou os dois braços e pôs no colo o seu chapéu. E ficou olhando a chuva cair e esperando logo que  o céu desabasse de uma só vez. Com os olhos fixos na janela, concentrou-se num silêncio mudo, como quem só tem papo pra mato, e pra cavalos e éguas.
--“Minha nossa mãe do céu!”
 O ônibus buzinou e brecou num barulho estridente. Um cheiro de freio com susto se alastrou no ar. O motorista desceu. Todos nós quisemos espiar para fora da janela. Geraldo, Geraldo. Eu não vou me esquecer desse nome. Ele foi o primeiro a descer pra ver o que tinha acontecido. E o que tinha acontecido...
Magrelo, sofrido. Dois olhos enormes e opacos. Parado, no meio da estrada. Fora atropelado, um cavalo. De tamanho mediano e orelhas baixas (de quem não escutou a buzina solta, pouco antes do breque). Tinha um rabo enorme. Devia ter pelo menos dois metros de rabo ali – eu diria que até Rapunzel trocaria suas tranças por uma cabeleira morena daquelas.
-- Minha nossa mãe do céu ! -- ele repetiu.  Mas, cê não viu, motorista??! Cê não viu, motorista???! Comassim cê não viu, motorista?!!!” – e repetia sem parar: Era um cavalo ! Era um cavalo! Era um cavalo!!!
Geraldo, Geraldo...Ele parecia estar profundamente comovido. Comovido com o quê? Comovido com a vida, ora bolas. A vida que provavelmente o cercava todos os dias. A vida do mundo dos cavalos. Com a perna ensanguentada, o cavalo relinchava. Ele estrebuchava, agitava seu pescoço para o chão e para cima, num movimento de dar continuidade à sua corrida. Mas, sua corrida dependia de suas pernas e, agora, uma delas estava manca, machucada.
-- Ele entrou na minha frente, correndo ainda! Esse cavalo não estava em sã conscicência. Deve ser cavalo sem dono, olha a magreza que isso aí está !
Todo o mundo do ônibus desceu pra ver o acontecido. O motorista resmungava sem parar. “Ah, minha viagem tá atrasando, gente. Vamos entrar, vamos tocar, vamos entrando, vamos, vamos! Bora pra frente, porque não posso chegar muito atrasado pra próxima parada, não.”
Geraldo estava agachado, junto ao cavalo. Pôs sua cabeça encostada próxima à crina, bem no peito do animal. Dava pra ver o movimento do bichinho fazendo a maior força com o pulmão. Passaram a respirar juntos: “Vamos, comigo. Respira, põe pra fora. Respira, põe pra fora. Respira, ufa. Isso, põe o ar pra fora.” A narina do cavalo fazia até uma leve reverberação em torno de seu orifício nasal. O ar que entrava, estava mesmo fazendo força pra encontrar a saída.” Vou te ajudar, péraí”.
-- Ahhhhhhh! – Fez a multidão, aos gritos, assustada. Parada em círculo e observando o que acontecia no centro dele, acreditaram que Geraldo fosse matar o cavalo de uma vez por todas.
Geraldo sacou um canivete do bolso de trás da calça colada ao corpo. Passou o dedo na ponta da faca, alisando-a pra ver se estava afiada. Num ato natural, de quem não fosse fazer outra coisa, tirou a camisa e cortou-a em tiras. Com mãos de médico (ou melhor, mãos de veterinário), enrolou-a todinha na perna ensanguentada do cavalo. Aquela crina toda lhe agradeceu só com o olhar, agora menos arregalado.
--Vamos embora pessoal! Vamos embora pessoal! Atropelei, acontece. Precisamos ir! – o motorista reclamava, impaciente com a curiosidade alheia.
“Agora, comigo, vamos levantar bichinho. No um, vai. E, dois, vamos. Lá vai. Vai, vamos...Três!” E levantaram. Geraldo e seu mais novo amigo eram quase um centauro.
-- Cara, pelamordedeus, você poderia fazer o favor de largar esse cavalo aí e nos mandarmos dessa estrada? Por sorte a nossa, está sem nenhum movimento, não sei se percebeu que podemos ser atropelados - todos nós - a qualquer momento... -- O motorista ironizou. Parecia ter um tique enquanto falava, pois suas pernas não paravam de se mexer. Provavelmente sofria de síndrome de pernas inquietas, eu averiguei.
No meio da pista, e numa confusão de ilusão óptica com realidade, por um momento achei que a crina, o cabelo do Geraldo e o rabo do cavalo eram um só, sacudindo, num todo movimento. Os dois caminhavam lentamente pro acostamento, oposto ao ônibus parado. Pelas orelhas empinadas de ouvinte e as palavras do outro, dava pra ver que se entendiam, cavalo e homem.
“Disseram que a danada é braba. Vou ter que amansar com meus dois braços. E vou montar em cima dela. Quem sabe você não se amarra nela, com essa sua crina toda bonita, hein? Ei, olha só isso. O mundo podia acabar assim, ó. Verde, verdinho, depois de chuva e sem ervas daninhas”. Essa foi a última frase que escutei ele falando, olhando pro matagal que acompanhava a paisagem à nossa volta. Não foi a mim que Geraldo se dirigiu, nem ao motorista, nem a nenhum dos passageiros. 

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