À galope e adiante - Geraldo
Camisa xadrez e uma calça muito
apertada. Ele espiava atento o movimento da rodoviária. Onde estamos? Será que
vai demorar muito pra chegar? Ô lugarzinho escondido, cacilda! Uma égua
melindrosa me espera. “Quero ir e voltar hoje mesmo. O patrão me chamou pra
amansar a bichinha. Não gosto de viajar, não. Gosto de ficar no mato, gosto de
andar a cavalo. Queria ir e voltar hoje mesmo.”
Era um cara assim, eu diria:
“Uai, sô, eu sô assim”. Era um cara atípico pros dias urbanos de hoje. Ele usava
um chapéu de palha, botinas de camurça. Ele usava um cinto desgastado, com um G
na fivela em maiúsculo, parecia bem surrado pelos anos de uso. Ele demonstrava
uma expressão no rosto de quem não queria estar ali, de quem não queria ter
saído de sua cidadezinha, do seu meio do mato. A pele meio morena de sol, de
gente que anda muito, gente que acorda cedo porque simplesmente gosta de andar
por aí, procurando o que fazer.
“Óia,
vê. Com a chuva caindo aí, se chover assim a viagem inteira eu não vou sair do
ônibus”. Sentava com a poltrona reta, não sabia que ela deitava e que poderia
dormir a viagem inteira se inclinasse só um pouquinho. A hora em que o ônibus
parou ele desceu. E voltou comendo uma paçoca. Gravei aquilo. Era uma coisa que
combinava com ele, aquele doce de
amendoim! Só achei que fosse ter mais
graça se ele voltasse comendo um pé de moleque. Como quem não quisesse mais
papo, ele cruzou os dois braços e pôs no colo o seu chapéu. E ficou olhando a
chuva cair e esperando logo que o céu
desabasse de uma só vez. Com os olhos fixos na janela, concentrou-se num
silêncio mudo, como quem só tem papo pra mato, e pra cavalos e éguas.
--“Minha nossa mãe do céu!”
O ônibus buzinou e brecou num barulho
estridente. Um cheiro de freio com susto se alastrou no ar. O motorista desceu.
Todos nós quisemos espiar para fora da janela. Geraldo, Geraldo. Eu não vou me
esquecer desse nome. Ele foi o primeiro a descer pra ver o que tinha
acontecido. E o que tinha acontecido...
Magrelo, sofrido. Dois olhos
enormes e opacos. Parado, no meio da estrada. Fora atropelado, um cavalo. De
tamanho mediano e orelhas baixas (de quem não escutou a buzina solta, pouco
antes do breque). Tinha um rabo enorme. Devia ter pelo menos dois metros de
rabo ali – eu diria que até Rapunzel trocaria suas tranças por uma cabeleira
morena daquelas.
-- Minha nossa mãe do céu ! --
ele repetiu. Mas, cê não viu, motorista??!
Cê não viu, motorista???! Comassim cê não viu, motorista?!!!” – e repetia sem
parar: Era um cavalo ! Era um cavalo! Era um cavalo!!!
Geraldo, Geraldo...Ele parecia
estar profundamente comovido. Comovido com o quê? Comovido com a vida, ora
bolas. A vida que provavelmente o cercava todos os dias. A vida do mundo dos
cavalos. Com a perna ensanguentada, o cavalo relinchava. Ele estrebuchava,
agitava seu pescoço para o chão e para cima, num movimento de dar continuidade
à sua corrida. Mas, sua corrida dependia de suas pernas e, agora, uma delas
estava manca, machucada.
-- Ele entrou na minha frente,
correndo ainda! Esse cavalo não estava em sã conscicência. Deve ser cavalo sem
dono, olha a magreza que isso aí está !
Todo o mundo do ônibus desceu
pra ver o acontecido. O motorista resmungava sem parar. “Ah, minha viagem tá
atrasando, gente. Vamos entrar, vamos tocar, vamos entrando, vamos, vamos! Bora
pra frente, porque não posso chegar muito atrasado pra próxima parada, não.”
Geraldo estava agachado, junto
ao cavalo. Pôs sua cabeça encostada próxima à crina, bem no peito do animal.
Dava pra ver o movimento do bichinho fazendo a maior força com o pulmão.
Passaram a respirar juntos: “Vamos, comigo. Respira, põe pra fora. Respira, põe
pra fora. Respira, ufa. Isso, põe o ar pra fora.” A narina do cavalo fazia até
uma leve reverberação em torno de seu orifício nasal. O ar que entrava, estava
mesmo fazendo força pra encontrar a saída.” Vou te ajudar, péraí”.
-- Ahhhhhhh! – Fez a multidão, aos
gritos, assustada. Parada em círculo e observando o que acontecia no centro
dele, acreditaram que Geraldo fosse matar o cavalo de uma vez por todas.
Geraldo sacou um canivete do
bolso de trás da calça colada ao corpo. Passou o dedo na ponta da faca,
alisando-a pra ver se estava afiada. Num ato natural, de quem não fosse fazer
outra coisa, tirou a camisa e cortou-a em tiras. Com mãos de médico (ou melhor,
mãos de veterinário), enrolou-a todinha na perna ensanguentada do cavalo.
Aquela crina toda lhe agradeceu só com o olhar, agora menos arregalado.
--Vamos embora pessoal! Vamos embora
pessoal! Atropelei, acontece. Precisamos ir! – o motorista reclamava,
impaciente com a curiosidade alheia.
“Agora, comigo, vamos levantar
bichinho. No um, vai. E, dois, vamos. Lá vai. Vai, vamos...Três!” E levantaram.
Geraldo e seu mais novo amigo eram quase um centauro.
-- Cara, pelamordedeus, você
poderia fazer o favor de largar esse cavalo aí e nos mandarmos dessa estrada?
Por sorte a nossa, está sem nenhum movimento, não sei se percebeu que podemos
ser atropelados - todos nós - a qualquer momento... -- O motorista ironizou.
Parecia ter um tique enquanto falava, pois suas pernas não paravam de se mexer.
Provavelmente sofria de síndrome de pernas inquietas, eu averiguei.
No meio da pista, e numa
confusão de ilusão óptica com realidade, por um momento achei que a crina, o
cabelo do Geraldo e o rabo do cavalo eram um só, sacudindo, num todo movimento.
Os dois caminhavam lentamente pro acostamento, oposto ao ônibus parado. Pelas
orelhas empinadas de ouvinte e as palavras do outro, dava pra ver que se
entendiam, cavalo e homem.
“Disseram que a danada é braba.
Vou ter que amansar com meus dois braços. E vou montar em cima dela. Quem sabe
você não se amarra nela, com essa sua crina toda bonita, hein? Ei, olha só
isso. O mundo podia acabar assim, ó. Verde, verdinho, depois de chuva e sem ervas
daninhas”. Essa foi a última frase que escutei ele falando, olhando pro matagal
que acompanhava a paisagem à nossa volta. Não foi a mim que Geraldo se dirigiu,
nem ao motorista, nem a nenhum dos passageiros.
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